O menino que aprendeu a ler aos 10 anos
Lama Pampa nascera em Orango, uma ilha do arquipélago dos Bijagós, no sul da Guiné-Bissau. Crescera entre as palmeiras da costa, os campos alagados de arrozais e os hipopótamos marinhos, animal que a sua tribo considerava sagrado. À noite, Lama Panda afastava-se dos mangais, receava-os, tornavam-se fluorescentes emitindo uma luminescência que, segundo a tradição, seriam almas de mortos sugadas pelas águas. Lama Pampa receava igualmente os peixes-bois, que atacavam o homem, e afeiçoara-se aos hipopótamos, que passeavam cordatamente nas praias e lagoas e, ao fim de tarde, mergulhavam no mar salgado para se libertarem das sanguessugas que lhes mordiam o corpo.
Desde os cinco anos que Lama Pampa era responsável por abastecer a família (mãe e irmãos) de peixe para a refeição da noite, improvisara uma cana de bambu, com uma liana fina enrolada na ponta, onde prendia uma minhoca, o isco do peixe. Na sua tribo mantinha-se a tradição do matriarcado (uma das últimas em vigor no mundo), as mulheres reinavam e dispunham sobre o quotidiano da tribo, eram elas que encarregavam os homens das tarefas produtivas, escolhiam o marido e, se ele não trabalhasse o suficiente, ou quando não trabalhasse o suficiente (desmatar, lavrar, semear, provisões de lenha, arranjo da tabanca), juntavam os seus pertences, depunham à entrada da casinhola onde viviam, e ele já sabia que não podia entrar, refugiava-se na casa da mãe. Ela escolhia outro homem, porventura mais novo, que lhe garantisse o trabalho bem feito.
Assim, Lama Pampa habituara-se, para além de sua mãe, a obedecer religiosamente às mulheres mais velhas da tribo – este hábito foi importante quando, aos 10 anos, os passadores de Bissau, que iam buscar crianças e jovens aos Bijagós para os levar para trabalhar na capital, levaram Lama Pampa para casa do advogado José Neves, a viver numa ampla vivenda perto do Palácio Presidencial. O menino fora trocado por dois quilogramas de bacalhau seco, uma saca de peixe fumado e duas latas de cinco litros de óleo para fritar.
Lama Pampa foi entregue à mulher de José Neves como seu faz-tudo. Nos primeiros meses em Bissau, Lama Pampa vivia confusamente, porque tudo o que era preciso estava escrito em letras que ele desconhecia. O saber que aprendera nos Bijagós de nada lhe servia. Ia fazer as compras diárias ao mercado do Bandim e tinha de decorar a uma lista de 10, 15 produtos, vegetais, cereais, frutas. A mulher de José Neves decidiu perder um dia a ensinar-lhe as 23 letras do alfabeto, uma a uma, dando vários exemplos para cada uma, que Lama Pampa repetia lentamente, como se saboreasse as letras e as guardasse num cantinho do cérebro, comprou-lhe um abecedário e disse-lhe com rispidez, juntas as letras e formas palavras. E deu-lhe um livro para ele praticar. Uma edição do século XIX, porventura do avô do José Neves, o primeiro colono da família a migrar para a Guiné, intitulado Contos da Mãe Gansa, de Charles Perrault, uma compilação de sete histórias infantis: O Capuchinho Vermelho, O Barba Azul, O Gato das Botas, As Fadas, Cinderela ou a Gata Borralheira, Henrique do Topete e O Pequeno Polegar, porventura a primeira tradução para português do livro de Perrault editado em França em 1697.
Com o abecedário e este livro, de capa dura e folha grossa, Lama Pampa retirava-se à noite para o anexo que lhe servia de quarto e, autorizado a gastar uma vela por noite, estudava sozinho, página a página, o livro de Perrault. No dia seguinte, antes de partir para o mercado de Bandim, a sua patroa fazia-lhe perguntas sobre as páginas que ele estudara. No princípio, as respostas eram confusas, Lama Pampa desconhecia o significado da maioria das palavras, referenciando realidades europeias. A história não falava de cocos, de hipopótamos marinhos, de palmeiras, de peixes-boi, de queimadas. O importante era, dizia-lhe a sua senhora, que ele conseguisse soletrar as palavras, não se preocupasse com o que queriam dizer.
Passado um mês, a patroa (que ele tratava por “siôra”) pô-lo à prova. Chamou-o uma tarde, quando ele varria o bailéu da vivenda e limpava o telhado de folhas apodrecidas, depôs-lhe o livro entre as mãos e disse-lhe para ele ler a história d’O Gato das Botas. E Lama Pampa leu, não com celeridade, muito menos com clareza (desconhecia a acentuação de muitas palavras), mas leu. A “siôra” disse-lhe que no dia seguinte ela ditaria a lista de compras e ele escrevê-la-ia, já não precisava de decorar. Lama Pampa informou-a que, na ida e vinda do Bandim, praticava a leitura lendo todas as palavras que via no caminho, sabia ler café, mercado, jornal, escola, oficina, pneu e muitas outras.
Um ano depois, Lama Pampa fez o exame do 4º ano do ensino básico. A senhora comprara-lhe os livros e inscrevera-o na escola como aluno externo. De quando em vez, ajudava-o, mas o menino habituara-se a estudar sozinho e tinha maior prazer em descobrir as matérias por si próprio, no anexo, à noite, consumindo uma vela, do que a ouvir as explicações. O que maior prazer lhe dera fora ler no manual de Língua Portuguesa a história dos Bijagós e dos seus povos. Aprendera que eram descendentes de escravos naufragados levados nos barcos-negreiros para o Brasil, e que, uns comidos pelos crocodilos, outros salvando-se, tinham ocupado a sua ilha remota, tinham-se escondido nos vales interiores e, descobertos, tinham lutado contra os portugueses. Por causa do apelido da família, Lama Pampa, sonhando, presumira ser descendente da rainha-sacerdotisa Okinka Pampa Kanyimpa, que, após um breve período de guerra, assinou, em 1930, um tratado de paz com os militares portugueses, decretou o fim da escravatura e atribuiu às mulheres mais direitos do que aos homens.
Lama Pampa sentiu crescer dentro de si uma fortaleza que desconhecia, não podia ficar toda a vida como criado dos brancos, ainda que sentisse grande afinidade com José Neves e sua mulher. Pediu autorização para continuar os estudos à noite no Liceu Kwame Nkrumah. Foi autorizado e a senhora insistiu em começar a pagar-lhe um vencimento mensal para as suas despesas.
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Nos seis anos seguintes, Lama Panda completou o curso liceal. Aconselhado por José Neves, inscreveu-se no primeiro curso superior de Direito havido na Guiné-Bissau, leccionado em parceria com a Faculdade de Direito de Lisboa. Para além de usar os seus manuais de Direito, teve em José Neves um grande companheiro, uma espécie de explicador em casa.
Anos depois, no princípio do século XXI, o casal Neves regressou a Portugal, não sem antes doar a sua casa a Lama Panda, que a transformou no maior e melhor escritório de advogados de Bissau.
Colares, agosto de 2021,
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